sobre desenhos e apagamentos
Atualizado: 5 de mar. de 2022
quando pequena eu não fui uma pessoa que desenhava, ou se fui, não lembro. o que me lembro é que meu pai tinha uma habilidade incrível com as mãos. ele desenhava perfeitamente, e quando digo isso, é sobre saber desenhar coisas palpáveis, sabe? ele sabia desenhar qualquer coisa.
nunca vou me esquecer de uma vez que ele pegou um tazo (quem lembra disso??? hahah), uma folha A4 e reproduziu o desenho pequeno num enorme. confesso que não me lembro qual era o bichinho, mas ficou lindo demais.
passei a vida toda achando que não sabia desenhar, porque somos levados a acreditar que quem desenha bem é quem sabe desenhar um rosto, ou cadeira, uma casa… um exemplo disso é que um grande número de pessoas vai a uma exposição de arte e sai de lá dizendo que aquilo lá até o sobrinho de 4 anos faria. pois é, mas não fez.
quando se é criança, simplesmente absorvemos os padrões sem criticar ou pensar sobre, porque a nossa preocupação é outra, só aceitamos. e é exatamente por isso que eu acho uma violência tão grande, todas as imposições de padronização que colocamos sob as crianças. não é preciso dizer pra ela que determinada coisa é errada ou sem valor, ela acaba percebendo pela maneira como as outras pessoas reagem a determinados estímulos e isso é introjetado sem nem perceber.
e é impressionante como isso vale pra tudo, seja para habilidades que ela vai acabar não desenvolvendo por achar que não é capaz, ou pela sexualidade que ela vai reprimir, pelas emoções que ela vai ocultar.
com 30 anos, terminando a faculdade de arquitetura, fazendo meu tcc, por acaso, numa mesa de bar, eu fiquei sabendo de cursos de extensão que a faculdade estava disponibilizando aos alunos, alguns deles, gratuitos. imediatamente perguntei se havia cursos de línguas, queria aprender francês ou italiano. me disseram que sim, havia. quando cheguei em casa entrei no site pra procurar. todos os cursos de línguas já estavam com todas as vagas preenchidas, então fui procurar todos os gratuitos presenciais que haviam (confesso que nunca acreditei em cursos de aulas gravadas e, também, por eu não ter disciplina suficiente pra ir até o fim dessa forma). encontrei um curso de design de superfície que eu sequer sabia do que se tratava até então. me inscrevi. seriam 4 sábados, 24h no total. quando cheguei na sala, havia uma professora, uma mulher de mais idade, de cabelo rosa que, instantaneamente, eu tive uma forte identificação por estar sempre de cabelo colorido.
renata rubim, a designer que trouxe o design de superfície para o brasil, foi a mestra dessa história. me mostrou que sim, eu sabia desenhar. sim, eu sabia criar com linhas curvas, com ângulos, com hachuras. me ensinou uma nova forma de me expressar, com design, com arte. uma necessidade represada a vida toda.
a partir disso a minha vida realmente mudou. anos depois ela me contratou pra trabalhar no escritório dela.
então hoje, a minha auto expressão está nas paredes da minha casa. quase todas as minhas criações estão coladas nas paredes do meu apartamento, sejam os desenhos a mão, iniciais, ou os que preparei exatamente para serem quadros, colagens, fotos.
um amigo falou esses dias pra mim “não te apaga”. eu tentei dizer pra ele que eu não fazia isso, mas a verdade é que isso é uma mentira. eu sempre me apago. eu me acostumei a me apagar desde a infância, e eu sei que isso não é uma exclusividade minha. a gente vai apagando diversas partes de nós, exatamente para se enquadrar violentamente naquele padrão que eu comentei há pouco.
eu apaguei minhas habilidades artísticas, apaguei minha sexualidade, tentei muito não me apagar enquanto mulher, mas me apaguei também, quando apenas desempenhei um papel esperado pela sociedade. hoje ainda me apago, buscando coisas perdidas do passado.
há alguns anos eu digo, que quero retomar a glenda pequeninha, que alguns parentes diziam ser arrogante, metida, mas não pelos significados reais dessas palavras, mas porque eles viam a autenticidade de uma criança que não se deixava pisotear, como arrogante e prepotente. estou num processo de resgate dos valores que eu tinha quando ainda não tinha a cabeça completamente atordoada pela vida real, quando o sofrimento ainda não fazia parte da minha rotina. acredito que todos nós devemos ter resquícios da nossa criança internamente guardada, com muito amor, com muito carinho.
o processo agora é de resgatar todas aquelas características, de forma madura, porque não posso agir como criança e, apesar de não ser fácil e ser bastante doloroso, é recompensador. eu fui uma criança com muito brilho e ele foi arrancado de mim de forma muito injusta. hoje eu busco ser destaque, novamente, na minha própria vida. eu quero brilhar de novo.